CONSIDERAÇÕES SOCIOLÓGICAS SOBRE A FÉ PÚBLICA

1 – FÉ PÚBLICA
A fé sempre foi compreendida, mais ou menos genericamente, como sendo crença religiosa ou, mais precisamente, como convicção dogmática da Igreja, que em todo o tempo se apresentou com a pretensão do saber absoluto e irrefutável.
No entanto, embora encimada por um dogmatismo desobrigado e incondicional, com o passar dos anos houve por bem vivificar aperfeiçoamentos em suas pesquisas, especialmente no relacionado a crença, quando veio a deparar-se com descobertas de muita força feitas pela ciência investigativa, quando constatou a expressiva multiplicidade, polivalência ou pluralidade de formas tangentes à fé, não mais sendo de seu uso exclusivo referida expressão.
Apenas como efeito elucidativo e mesmo com tendência à explicação da riqueza do idioma pátrio, todos os glossários ou léxicos, invariavelmente, fornecem conceitos sobre o que seja fé no seu mais exato significado, e não apenas no sentido de algo sobrenatural: crença, convicção, crédito, afirmação, certeza, comprovação, confirmação, prova, confiança, firmeza, testemunho, atenção, asseveração e até mesmo, “fidelidade a compromissos e promessas”.
Por outro lado, os cientistas consideram a crença ou certeza, dois de seus sinônimos, como primeiro grau do saber, admitindo e aceitando, normalmente, nas conjeturas ou hipóteses, a possibilidade de erro ou inexatidão de um resultado sobre determinada matéria, ou seja, pode ser que sim ou pode ser que não.
Defrontamo-nos, aqui, com uma fé ou certeza relativa, e não absoluta como pretende a Igreja; aquela permanentemente no âmbito de um racionalismo possível quanto à detecção de posições contrárias ou contestatórias, enquanto esta, como linha doutrinária, considera a crença ou fé como uma virtude supranatural, apresentando-se o revelado como absolutamente genuíno, verdadeiro e inabalável, não recepcionando impugnações, refutações e tampouco qualquer hipótese de recriminação ou exprobração.
Isto se dá pelo fato de apoiar-se na autoridade preternatural (fé divina), que, segundo suas regras, não está afeta a erros, suposições ou probabilidades, havendo mesmo certos posicionamentos extremamente radicais conhecidos como fé de carvoeiro, ou seja, a crença cega e sem qualquer possibilidade de negação.
Sem dúvida, é um ponto de vista a ser respeitado.
A investigação científica tende sempre ao ceticismo, ao reconhecimento da dúvida, enquanto que a Igreja tende ao dogmatismo, à adesão sem reserva, não vindo tais posições a significar necessariamente um conflito quanto à discussão a respeito da fé, pois ambas tendem a encontrar-se em um único nível, o de “acreditar”, o “crer”, como fato relevante para as suas decisões.
Diante dessa situação, digamos, “colidente”, expressão a significar tão-somente campos diferenciados na atuação, procuraremos conjugá-las num plano, dimensão e posições singulares.
Como é notório, o ser humano é um animal racional e crente acima de tudo, condição própria da sua natureza, tanto que, desde seu nascimento, aceita aqueles que se dizem seus progenitores como verdadeiros, antes mesmo de qualquer questionamento quanto ao fato, praticamente sem controvérsias.
Daí a ilação de que o saber e crença sustentam-se de lado a lado, mutuamente.
Nessa linha de reflexão, teremos que visualizar os princípios primeiros não como verdades evidentes, mas sim como bases adequadas do nosso saber, uma vez que somos levados a acreditar na exatidão dos processos metodológicos que conduzem aos resultados almejados, e a abonar a velha pretensão de que o saber real só é o que a ciência proclama conhecer, mas também acreditar naquilo que sabemos, acima de qualquer realidade.
A crença possui diferentes perspectivas e acessos, tanto do lado dogmático como do cético, admitindo, assim, diferentes formas.
Eis o princípio fundamental das alternativas que decorre diretamente do homem, em virtude da diversidade de convivência e formação social.
De fato, encontramos várias maneiras de crenças, a do saber, do misticismo, da religião, da convivência social e o crer no Estado, este como denominador comum e regulamentador do comportamento em sociedade, já que acreditar no Estado significa confiar no Chefe da Nação como nosso representante maior, pois a ele foi atribuída a crença coletiva para ditar condutas, normas ou regras que regulamentam a atividade social, comercial, financeira e tudo o mais.
Isto sempre imaginando um Estado de Direito Democrático.
Esse mesmo Estado, na multiplicidade e desenvolvimento de suas quase infindáveis atividades como representante do povo, atribui, nos termos da Constituição, a determinados cidadãos, o direito de representação para determinadas e específicas tarefas, os quais concorrem para a paz social, pessoas nas quais estão concentradas ações de intensa repercussão no mundo dos negócios.
São diversas essas personagens e, dentre elas, estão inseridos o oficial de registro público (registrador), o serventuário, o tabelião, o escrivão, o notário entre outros, cujas cotas de participação são marcantes e plenas de responsabilidade, uma vez que suas detalhadas atividades plasmam, autenticam, dão como verdadeiros os atos praticados pelas gentes em suas diversas tratativas.
Este modo de declarar que determinado ato praticado ou rito perseguido está perfeitamente estribado em ditames legais, é conhecido como fé pública, ou seja, é real, iniludível, verídico e legal, ficando as partes envolvidas na ação perfeitamente abrigadas e “aquecidas” pelo Direito, isentas de qualquer dúvida, claro, até prova em contrário.
Portanto, a fé pública atribuída a essas pessoas foi em decorrência de um mandamento legal, tendo em vista o cumprimento de algumas e sérias formalidades, bem como de especificidades naturais que modelam e ajustam o acolhimento do indivíduo como representante formal desse Estado para determinado labor.
Especificamente essa crença atribuída, por exemplo, ao notário, guardadas as devidas proporções, é a mesma que o Estado recebeu de seu povo, mas restrita a garantir e certificar uma segurança nas relações sociais (atos jurídicos) que todos desejam como princípio de justeza ou certeza daquilo quanto ao efetivamente acertado, escriturado e trasladado.
A fé pública, nesta conjuntura individualizada na figura do notário, é uma das mais amplas já conhecidas, pois ao detentor dessa atribuição cabe-lhe a expressão da verdade, ou melhor, vige a crença popular de ser correto, autêntico em tudo aquilo que dita e escreve, salvo incontestável prova em contrário, já que a sociedade não pode ser traída em nenhuma hipótese.
Como se nota, não ocorre a eleição do absolutismo nas suas ações, permanece essa pessoa adstrita às investigações sociais, há a admissão da possibilidade de erros ou lapsos.
Contudo, a crença nesses atos do notário constitui-se no primeiro grau na hierarquia do saber, do conhecer social.
Assim, ele é depositário da fé pública quando apõe seu sinal ou declara ser determinado ato praticado absolutamente isento de inverdade, dúvida ou suspeita, que, segundo Aurélio Buarque.
H. Ferreira, é a “presunção legal de autenticidade, verdade ou legitimidade de ato emanado de autoridade ou funcionário autorizado, no exercício de suas respectivas funções” (Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, Edit. Civilização, RJ, 10ª ed. s/d) .
2 – FÉ PÚBLICA NOTARIAL
Enquanto depositários de fé pública, os notários exercem uma função que não pode quedar-se alheia aos preceitos de liberdade, justiça, segurança jurídica, igualdade e demais valores institucionalizados.
Dentre as exigências que a sociedade impõe, tanto no momento da criação de uma norma ou à validação de atos jurídicos, como em seu desenvolvimento e aplicação, sobressai, como se afirmou, a segurança jurídica.
Essa aspiração constitui-se num dos fundamentos da forma das normas quanto às ações individuais visando uma legalidade perante os cartórios, cujos pressupostos, requisitos e efeitos tendem, entre outros fins, a garantia e a certeza dessas relações.
Dentre as normas destaca-se, de maneira intensiva e mesmo decisiva, a finalidade que o corpo social e lei atribuem aos providos de fé pública.
Assim, a Instituição de Direito Público atribui a determinadas pessoas, com exclusão das demais, a qualidade de verdade ao que atestam e afirmam, com características semelhantes àquelas que declaram uma lei, diante do que declaram os particulares em suas variadas relações de negócio.
O fundamento da existência da fé pública encontra-se na vida social, que requer estabilidade em suas relações, para que venham alcançar a evidencia e permanência legais.
O âmbito do desenvolvimento da fé pública é tão amplo como os das relações jurídicas que se referem a toda atividade humana, razão pela qual há distintas formas: a geral, a especial, a judicial, a administrativa e a extrajudicial, tendo esta última como depositário dominante, o notário, embora existam outras pessoas que desempenhem a fé pública em atividade notarial, como por exemplo, os cônsules e os militares, entre outros.
Esta diversidade não é obstáculo para se afirmar que todos os tipos respondem a um conceito e finalidade idênticos, sendo manifestações que procuram dotar as relações jurídicas de certeza e estabilidade, de autenticidade e indiscutibilidade.
No entanto, a fé pública não abriga apenas o significado de representação exata e correta da realidade, de certeza ideológica, mas também de um sentido altamente jurídico, ou seja, fornece evidência e força probante atribuída pelo ordenamento, quanto à intervenção do oficial público em determinados atos ou documentos.
O valor jurídico e a certeza implicam que a fé pública pressupõe a correspondência da realidade, cuja firmeza é tutelada pelo Direito.
A consistência desse efeito traduz-se na própria importância da função exercida, esta, por sua vez, submetida a todos os tipos de garantias e exigências, que, necessariamente, derivam de normas jurídicas, incluindo severo regime de responsabilidades civis, penais e administrativas, caso ocorrentes desvios, deslizes ou incorreções no seu exercício.
Por sua própria natureza, a fé pública é uma instituição jurídico-pública, tendo, necessariamente, um “sinal público” autorizado pelo Estado, de maneira que o qualificativo de público compreende a “fé”, significando que o notário é uma autoridade da sociedade nesse setor, vindo a garantir a certeza e autenticidade naquilo que exara.
Os escrivães, registradores, serventuários da Justiça e notários, estes, no ensejo, destacadamente apontados, são os principais depositários da fé pública, pois exercem uma atividade bastante peculiar em relação a outras prestadas em regime funcional.
No caso, a qualificação dos notários como funcionários públicos, onde seria mais correta a designação de Oficiais Públicos, só se dá em alguns efeitos.
Esta situação, que não integra as estruturas administrativas dos servidores públicos, dá-lhes a atribuição de profissionais no exercício de uma função pública de certificação, afirmação e depositários documentais em regime privado de profissão liberal, submetida a severos controles hierárquicos, com mecanismos de rigorosa seleção, implicando no estrito dever de cumprimento do objetivo de assegurar, no que legalmente possível, a coincidência da certeza real ou física, aliada à convicção, firmeza jurídica no que documentam.
Deste modo, pela forma organizacional e desempenho profissional, é permitida uma atuação independente pelos notários, mas, uma atribuição altamente disciplinada e rigorosa, havendo possibilidades de ação incondicionada e plena autonomia – à exceção do absoluto respeito às leis e organização judiciária -, razão pela qual os notários, normalmente, usufruem de grande prestígio e respeito, diante do tipo de organização, que, a bem da verdade, responde a uma tradição de longos anos.
Profissionalismo independente e fé pública aparecem indissoluvelmente unidos a serviço do interesse público, assegurando a contribuição notarial ao princípio constitucional de segurança jurídica, perante a esfera privada, pois que os notários são portadores dessa garantia legalmente outorgada.
O caráter cautelar da função notarial tem, como um dos resultados, notável efeito anti-pleito, sendo, assim, um providencial mecanismo preventivo de litígios, além, evidentemente, de ser um dos alicerces para as decisões judiciais.
Seus sujeitos são instrumentos a serviço da justiça e sua atuação, necessariamente equilibrada e institucionalizada, vem viabilizar uma ação contrabalançante, equilibradora, em favorecimento de uma composição quando emergirem interesses antagônicos ou divergentes, eventualmente em conflito extrajudicial.
Esta linha de trabalho poderá possibilitar, não poucas vezes, a exclusão no presente, ou no futuro, de um litígio, não sendo considerado meramente um colaborador instrumental de preparação para futuros processos.
A diferença entre um juiz e um notário reside, se permitida a comparação e tão-somente no relacionado aos seus efeitos, no fato de que o magistrado exerce uma função reparadora e reordenadora da patologia na vida jurídica, enquanto que o notário assume uma função preventiva de entrechoques, mediante a qual contribui poderosamente pela organização da ordem social.
Esta postura formal de mediador entre aquilo que é público e privado, manifesta-se como fator de estabilidade, verdadeiro consultor das partes na formação e expressão da vontade juridicamente válida.
Como se depreende, temos que atribuir à atividade notarial pelo seu agente, autêntico jurista-documentador, como sendo um serviço fundamental à administração da justiça, em virtude da fé pública que envolve seu labor, tanto em relação à eficácia probatória, como à força executiva, alcançando sua plenitude via sentença judicial se instruído algum processo com atos por ele praticado.
Percebe-se, com esta lógica, que a principal finalidade da fé pública é a segurança jurídica que deve imperar nas relações negociais perpetradas pela sociedade, cujo valor atinge um raio de ação na totalidade do ordenamento jurídico, tanto assim que, a maior segurança de um documento notarial, está na razão do mesmo ser considerado público, quando proclama urbi et orbi a finalidade e certeza jurídica ali existentes.
A função equilibradora que os notários devem exercer também desemboca na obrigação de precisas informações, diretrizes e conselhos aos consulentes.
Eis aqui a mais antiga e digna tradição notarial, ou seja, a cientificação às partes, com absoluta isenção de ânimo ou influência na vontade dos que apelam pela sua assistência, quanto ao alcance das consequências ou efeitos jurídicos da relação a ser celebrada ou já realizada, e isto em todos os níveis, tanto à vista de uma simples procuração pública ou emancipação, como em virtude dos negócios mais complexos existentes nas relações sociais, dos tipos deserdação, testamento ou sub-rogação de vínculo, onde o trâmite burocrático cartorário é classificado pelo Código Civil como dos mais exigentes.
Cada vez mais a função notarial assume posição fundamental dentro da sociedade, pois esta, no afã de desenvolvimento e possuidora de alto poder criativo, gera normas e regras numa espantosa velocidade, mal entrando uma em vigor, para outra, a curto ou médio prazo, vir a revogá-la ou regula-la diferentemente, tornando-se, pois, necessária a função de um agente compensador do Estado para essas informações.
Esse dever de comunicação não resulta apenas da deontologia notarial, mas, também, da prestação jurídica que ele dispensa à segurança nas relações sociais, havendo necessidade de que o mesmo certifique-se que os contratantes compreenderam e dominaram perfeitamente o conteúdo do negócio jurídico realizado, aplicando, dessa forma, a certeza e segurança da fé que lhe foi atribuída para o exercício da função delegada.
Esta fé pública atribuída ao notário, traz vários aspectos, destacando-se aquele que é conhecido como “controle da identidade subjetiva” e o “controle da capacidade”.
3 – FÉ PÚBLICA REGISTRAL
Conhece-se por fé pública registral, o princípio no qual a pessoa que leva adiante um negócio aquisitivo imobiliário, vê confirmado seu ato em clima de amplo amparo, em virtude de um registro predial anterior, quando, pela publicidade, especificidade e continuidade, verificou a situação antecedente estar perfeita e inatacável.
A faculdade material de disposição contida na ação de registro constitui a boa-fé do tráfego jurídico, vindo, pois, representar a verdadeira realidade jurídica.
Ela estende-se a todas as relações jurídicas passíveis ao registro, respondendo positivamente quanto à existência dos direitos reais ali estabelecidos, ou negativamente, se houver direitos reais instituídos que proíbam a disponibilidade.
Em suma, a fé pública registral à semelhança da notarial, resume-se na “crença da verdade” evidenciada em tudo aquilo que se acha inscrito na tabula predial, uma vez que incorpora um conjunto de normas extremamente rígidas, que tem por finalidade proteger a confiança criada, a qual pode, negativa ou positivamente, estar apto à disponibilidade.

  • Trecho constante da obra “Tabelionato de notas e o notário perfeito”, Campinas, Edit. Copola, 1998)
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